opinião

'Nunca me sonharam'



O documentário "Nunca me sonharam", lançado em agosto de 2017, sob a direção de Cacau Rhoden, constrói um rico, diverso e estarrecedor panorama da educação pública brasileira a partir das percepções de jovens do Ensino Médio, entremeadas por análises de especialistas, educadores(as) e profissionais de várias áreas do conhecimento, acerca do histórico sucateamento do ensino público no país e seu impacto na vida, presente e futura, dessas gerações.

O filme destaca o desalento das juventudes brasileiras ouvidas em um mosaico multifacetado que congrega diversas regiões, culturas e perfis do Brasil, com o recorte etário, étnico-racial e de classe social. As opiniões dos(as) estudantes denunciam a baixa qualidade da educação pública, a precária infraestrutura das escolas, os medos, as angústias, as expectativas e os sonhos que lhes são sonegados.

Em um dos impressionantes relatos, o documentário dá voz e vez para um jovem do interior do Nordeste que afirma: "Nunca me sonharam advogado, nunca me sonharam médico". Esse depoimento individual, que dá nome à película, reveste-se de um caráter coletivo ao explicitar a forma como, muitas vezes, a sociedade ignora ou invisibiliza as potencialidades das juventudes, ceifando suas perspectivas, olvidando seus talentos e sepultando o reconhecimento das identidades socioemocionais desses jovens cidadãos(ãs).

Noutra passagem de "Nunca me sonharam", um jovem entrevistado questiona a existência de supostas condições de isonomia e de igualdade de oportunidades às juventudes, notadamente aquelas pobres e negras, ao estabelecer uma metáfora para explicar os (des)caminhos da meritocracia em terra brasilis: "é como uma corrida até o topo de um prédio em que algumas pessoas partem do 5º andar e vão de elevador, enquanto eu, pobre, negro, vou de escada, desde o subsolo."

Essas e outras tantas histórias fizeram-me recordar de uma recente situação que vivenciei em Porto Alegre, na condição de advogado pro bono. Instado a acompanhar o caso de uma prisão em flagrante de um dos filhos de uma também jovem senhora, acorri a uma delegacia distrital em um dos tantos morros da periferia da Capital gaúcha. Lá chegando, acompanhei o depoimento de um jovem pobre e negro, de sua mãe e irmão. A acusação? Receptação de peças de motocicletas furtadas ou sem origem.

Para além da situação jurídica envolvida no caso, chamou-me muita atenção a reação desses jovens ao final do interrogatório na delegacia de polícia, tanto daquele que restou acusado quanto da do irmão, que figurou como suspeito. Ambos demonstravam um misto de indignação e naturalização ante todo o processo, mesmo cientes da complexidade do ocorrido e da repercussão na sua vida pessoal e profissional. Em vez de uma tomada de consciência, seguiram seus rumos na franja dessa zona gris que perpassa o legal e o ilegal nesses territórios, também eles alijados da necessária segurança dos direitos à educação, à cultura, à saúde, ao lazer e à moradia digna.

"Nunca me sonharam" ajuda-nos a compreender os vários matizes e complexidades que constituem o imaginário social dessas juventudes brasileiras, especialmente daquelas que não tiveram e continuam a não ter as mesmas possibilidades de acesso e fruição ao direito social à educação. Ao desabrigo do que preconiza a Constituição Federal em seu art. 205, a esses jovens não restou garantido o pleno desenvolvimento humano, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Quiçá, por isso, na esteira de Darcy Ribeiro, estejamos onde estamos, imersos em falsas dicotomias e cegos por tantas contradições, como as que nos dividem entre "incluídos" e "excluídos", "iguais" ou "nem tão iguais assim"..

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